Por Thiago
Buschinelli Sorrentino
Fonte: Valor Econômico
O
ajuizamento da ADI 5.635 pela Confederação Nacional da Indústria (CNI) traz à
memória uma advertência feita pelo Min. Moreira Alves na sessão de 02/12/1999.
Essa ADI ataca o Fundo Estadual de Equilíbrio Fiscal (FEEF, Lei 7.428/2016, do
Rio de Janeiro), na parte em que condiciona a fruição de benefícios fiscais
atuais ou futuros ao depósito de montantes àquele fundo.
Naquela
oportunidade, o Supremo Tribunal Federal (STF) discutia a concessão de medida
liminar contra Lei do Estado do Mato Grosso do Sul que condicionava o acesso ao
diferimento de ICMS ao recolhimento de valores em prol do Fundersul.
A
liminar foi negada e, pouco mais de sete anos depois, o Supremo confirmou a
constitucionalidade da exação.
O
Brasil tem um histórico de transferir à coletividade os custos por erros governamentais.
Mas o Estado parece imune a qualquer responsabilização
Porém,
a advertência de M. Alves permanece incômoda. Ponderou o ministro que o
diferimento transcendia o interesse econômico do contribuinte, por também
revelar-se um mecanismo útil de fiscalização e de cobrança tributárias. Soava
estranho, como ainda soa, que um Estado cobrasse valores para aplicar regime
que lhe era interessante e eficiente.
A
ADI 5.635 dá ao STF a oportunidade de revisitar dois temas relevantíssimos, sem
prejuízo dos demais argumentos. Também lhe dá a oportunidade de reavaliar o
alerta feito por M. Alves.
O
primeiro deles é a função que a Constituição dá ao sistema tributário. Se a
tributação tiver por função principal obter recursos para o erário, como uma
finalidade boa em si mesma, torna-se admissível sacrificarem-se valores
constitucionais como eficiência econômica, fomento das condições para a oferta
de empregos e isonomia.
Diferentemente,
se benefícios, incentivos ou ainda simples regimes ou técnicas de arrecadação
("incentivos") forem subordinados aos valores econômicos e sociais da
Constituição, tarifar-lhes o acesso torna-se problemático.
Num
mundo ideal, a concessão de incentivos fiscais não tem por objetivo primordial
aumentar o lucro de empresas. Incentivos devem ser projetados de modo a
fomentar valores constitucionais transcendentes aos interesses puramente
arrecadatório e patrimonialista. Ademais, o Estado está obrigado a entregar ao
contribuinte um sistema tributário simples, de fácil compreensão e execução.
Portanto, é equivocado interpretar incentivos como simples benesses, graças ou
favores. Dadas as circunstâncias, como no caso do Simples Nacional, eles são
imperativos.
Tarifar
o acesso aos incentivos tende a sacrificar valores constitucionais mais
relevantes, para atender ao interesse arrecadatório como uma finalidade
bastante em si. Se houver razão constitucional para conceder um incentivo, o
Estado está obrigado a fazê-lo, ainda que em prejuízo de um hipotético aumento
genérico da arrecadação.
Outro
ponto interessante diz respeito à capacidade de influência que o cenário
econômico teria sobre a percepção da legalidade da tarifação do acesso aos
incentivos. A "solvência" do Estado seria um objetivo absoluto,
diante do qual todos os outros cederiam? A. Barak diz que um juiz nunca deveria
tomar uma decisão que implicasse ruína constitucional. Uma parte do problema
está na medida. Quando se elege um objetivo supremo, tende-se a perder
quaisquer restrições para fazê-lo valer. Na fictícia Omelas de LeGuin, o
abundante bem-estar material da sociedade era garantido pela tortura de um
único indivíduo.
Qualquer
solução do desequilíbrio financeiro somente será constitucional se houver
proporcionalidade na divisão dos respectivos custos. O Brasil tem um histórico
de transferência integral à coletividade dos custos por erros governamentais.
Mas o Estado parece imune a qualquer tentativa de responsabilização. Normas de
proteção, como a Lei de Responsabilidade Fiscal, deixam de ser aplicadas com
fundamento na fragilidade dos estados e municípios frente à União ou na
"intranscendência da pena". Na distopia de Ellison, cada hora
atrasada para um compromisso era deduzida do tempo de vida do indivíduo pelo
implacável Ticktockman, embora fosse ele incapaz de reconhecer os próprios
atrasos.
O
segundo tema refere-se ao conceito constitucional de pacto federativo.
A
inicial da ADI 5.635 aponta que a tarifação do acesso aos incentivos implicaria
diminuir o repasse de valores devidos aos municípios, cuja partilha é
obrigatória.
Aparentemente,
o FEEF é uma espécie de "planejamento tributário reverso", capaz de
diminuir o valor que deveria ser repartido com os municípios fluminenses. Mas
inconstitucionalidades não se compensam. O fato de o modelo financeiro da
federação ser pragmaticamente insustentável não justifica a medida de correção
unilateral.
Esse
"planejamento" indica haver dificuldade para que o Congresso, foro
adequado, trate das deficiências financeiras dos entes federados. Ao enfrentar
a questão, o STF arrisca-se a atrair críticas por chancelar irresponsabilidade
fiscal.
Em
suma, nas entrelinhas dos votos e das decisões que serão proferidas na ADI 5.635, encontraremos os conceitos do STF para justiça tributária, pacto
federativo e responsabilidade fiscal.
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